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RELATO DE PARTICIPAÇÃO EM ATIVIDADE DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS

Ao Colégio Episcopal da Igreja Metodista

De: Magali do Nascimento Cunha

Relatório de participação: Reunião do Grupo de Referência da Peregrinação de Justiça e Paz do

Conselho Mundial de Igrejas (GRPJP), 20-26 de fevereiro 2017

Mandato

O GRPJP foi formado pela secretaria-geral do Conselho Mundial de Igrejas após a decisão da X Assembleia do CMI de responder aos desafios lançados pela Década de Superação da Violência (2001-2010), por meio da iniciativa da Peregrinação de Justiça e Paz – um convite às igrejas, a cristãs/cristãos e a todas as pessoas de boa vontade. O desafio foi assumido pelo próprio CMI em sua reunião de planejamento de ações até 2021.  O convite do CMI para a Peregrinação de Justiça e Paz tem uma mensagem importante: as igrejas estão numa jornada neste mundo, a caminho de outro mundo possível, como diz a Bíblia, de “um novo céu e uma nova terra” (Apocalipse). Vivem e trabalham por isso. A preposição “de” faz toda a diferença: não uma peregrinação pela justiça e pela paz, mas “de” justiça e paz. Significa que as igrejas precisam seguir no caminho por outro mundo possível, testemunhando e trabalhando a justiça com paz. Não mais uma forma de ativismo cristão e sim um compromisso com o Deus do “shalom”. Uma jornada “de” justiça e paz que os cristãos mesmos devem testemunhar, dentro de suas comunidades religiosas, entre elas e com as outras religiões, contagiando o mundo.

O GRPJP foi criado em 2014, com 25 pessoas representando diferentes igrejas-membro do CMI e regiões do mundo, e com três observadores: um da Igreja Católica Romana, um do Judaísmo e um do Islamismo. Fui convidada para participar como metodista, brasileira e latino-americana. O grupo iniciou suas atividades em 2015 para assessorar o CMI em suas atividades e propor ações em torno a Peregrinação de Justiça e Paz. A primeira reunião anual aconteceu no Instituto Bossey (Suíça), em fevereiro de 2015, tendo decidido que encontros do grupo só fariam sentido se fossem realizados como uma peregrinação, ou seja, fora dos espaços do CMI, caminhando com igrejas e contextos que demandam a promoção da paz com justiça. Decidiu-se pela peregrinação nas regiões do mundo e com atenção àquelas definidas como prioridade de ação do CMI por viverem situações-limite. Por isso em 2016 a reunião anual aconteceu no mês de fevereiro na região do Oriente Médio, onde é realizado o Programa Ecumênico de Acompanhamento à Palestina e a Israel, com peregrinação pelas cidades de Jerusalém e Belém.

Neste fevereiro de 2017, o grupo dirigiu-se à África, baseando-se na Nigéria, sem esquecer que outros dois países estão na lista das prioridades: Sudão do Sul e República Democrática do Congo. Duas cidades receberam o grupo na Nigéria: a capital Abuja e Kaduna, na região centro-norte. O organizador da visita foi o pastor batista, secretário-geral do Conselho Cristão da Nigéria Rev. Wishishi I. Yusuf.

As reuniões tornaram-se, assim, oportunidade de as igrejas e regiões irmãs representadas no GRPJP expressarem solidariedade diante das situações-limite de falta de paz e injustiça dos locais visitados, aprenderem sobre a realidade em questão e as práticas realizadas pelos grupos locais, contribuírem com o compartilhamento para outros grupos, em busca de apoios e outras ações concretas, estudarem as ações do CMI e das igrejas-membro no enfrentamento dessa realidade e de outras.

A Nigéria

Visitar a Nigéria é trazer à memória os laços que unem o Brasil àquele país: a escravidão. Durante os mais

300 anos de colonialismo exploratório do Brasil, mais de cinco milhões de escravos foram trazidos da África (milhares deles da Nigéria), para trabalhar fundamentalmente nas fazendas de café e cana-de-açúcar. As marcas dos nigerianos (yorubas) nas culturas do Brasil é inegável, seja nos costumes, na língua, na comida, na religião.

Povo sofrido pela escravidão e pela colonização britânica, libertou-se em 1960, mas seguiu experimentando conflitos de guerras civis, ditaduras militares. Seu primeiro governo democraticamente eleito depois de muitas décadas foi alcançado em 2000, depois do fim do regime militar. O atual mandato presidencial foi iniciado em 2015. No entanto, esta democracia tem estado sob risco por conta da insurgência do terrorismo e da potencialização de conflitos tribais.

A Nigéria tem 180 milhões de habitantes e mais de 500 grupos étnicos, dos quais os três maiores são as haussas, os igbos e os yorubas, línguas que são comumente faladas nas respectivas regiões que habitam. O país é dividido ao meio entre cristãos e muçulmanos. Os cristãos, em sua maioria vivem no sul e nas regiões centrais, e os muçulmanos, concentrados principalmente no norte mas também estão presentes nas regiões centrais. Uma minoria da população (cerca de 2%) pratica religiões tradicionais e locais, tais como as religiões igbo e yoruba.

A Nigéria é um país reconhecido do ponto de vista econômico por conta das reservas de petróleo que possui. No entanto, os sucessivos governos anti-democráticos nunca desenvolveram políticas de distribuição dessa riqueza de forma justa. A Nigéria tem altos índices de pobreza e de analfabetismo. A corrupção também é grave problema entre os quadros públicos. Há relatórios que mostram que mais de 400 bilhões de dólares foram roubados do tesouro nacional por líderes nigerianos entre os anos de 1960 (independência) e 1999 (fim do regime militar).

As igrejas

Os cerca de 50% cristãos da Nigéria são, na maioria (cerca de 74%) protestantes, sendo os demais católicosromanos (25%) e ortodoxos e outros grupos cristãos (1%).

Há um Conselho Cristão da Nigéria, do qual faz parte a Igreja Metodista e um bom número de igrejas protestantes históricas e a Igreja Católica Romana. Há ainda a Associação Cristã da Nigéria, que reúne o Conselho Cristão, igrejas pentecostais e igrejas carismáticas, com uma série de atividades de ação social e de defensoria dos cristãos junto ao governo da Nigéria.

O arcebispo metodista Revmo. S. O. Idoko foi uma das lideranças do Conselho e da Associação que recebeu o grupo em Kaduna.

A falta de paz e de justiça

Marcada pela injustiça econômica em toda a sua história (exploração colonial britânica e governos corruptos comprometidos com o interesse privado em detrimento do bem estar da população), a Nigéria tem vivido situações de extrema violência, que a tem colocado numa crise humanitária sem precedentes. A insurgência do grupo extremista Boko Haram, que se identifica como um braço do Islã, somada às crescentes ações de violência por parte de um grupo tribal nômade denominado Tocadores de Gado (Boieiros) Fulani, que envolvem conflitos de terra (pasto e água) e propriedade de gado, tem provocado um altíssimo número de mortes, sequestros de jovens e mulheres que são escravizados nas fileiras extremistas, a destruição de povoados inteiros e o deslocamento de populações regionais inteiras (fala-se de dois milhões de pessoas) que se tornam refugiados especialmente no Niger e no Chade. Esta situação é mais grave no norte do país, palco das maiores ações do Boko Haram, mas também tem se intensificado na região central, com alguns episódios no sul.

A reunião do GRPJP: um relato feito com paixão

Na abertura das atividades (foto 1), em 21 de fevereiro, na Casa de Reuniões da Convenção Batista, na capital Abuja, a fala de abertura do secretário-geral do Conselho de Igrejas de Toda a África Rev. Andre Karamaga já desafiava: “Não há necessidade de lembrar como a ganância e a imoralidade levou a uma situação em que os filhos e filhas da África foram vendidos como mercadorias e quanto a este crime nunca nos pediram desculpas. (…) Nossa responsabilidade comum é fazer deste mundo não uma floresta na qual grandes animais ameaçam os mais fracos. Mas um espaço de promoção da paz com justiça e dignidade. Isso tem a ver com a linguagem que usamos na vida cotidiana, por exemplo, dizemos com razão que precisamos de mecanismos para combater o racismo e o etnocentrismo. Mas em muitos casos esquecemos que não temos muitas raças porque nós somos uma única raça humana”.

Nesse primeiro dia, ouvimos sobre a difícil realidade da Nigéria: recessão, desemprego, fome, corrupção somados às expressões do extremismo islâmico, que agride e mata cristãos e islâmicos que dialogam, e do extremismo cristão que prega ódio e vingança. “Enfrentamos uma vida seca…tudo está seco… para todos”… Palavras-chave dos líderes do Conselho Nacional de Igrejas da Nigéria: construir a paz com reconciliação; enfrentar os fundamentalismos com diálogo e ações conjuntas por justiça econômica; superar as tentações do paternalismo dos que sempre dominaram e exploraram, inclusive grupos religiosos. Não há paz sem justiça; não há justiça sem paz. No meio de tantas palavras impactantes, um coral de mulheres de várias igrejas de Abuja (foto 2). Muitas com seus filhinhos ao colo… Quanta alegria e vitalidade expressas! Esperar contra toda esperança!

Visitamos a Arquidiocese Católica, a sede da Associação Cristã da Nigéria, um projeto católico de formação de lideranças para governança pública e a Mesquita Nacional. Ouvimos líderes e pessoas comuns nos seus clamores por paz e pelo tratamento do problema da violência e do extremismo para além das manchetes de jornais: olhando para a história da Nigéria, para as questões econômicas, de corrupção, e de falta de democracia.

Depois de um dia e meio na capital Abuja, o GRPJP, viajou em 22/2, para Kaduna, três horas ao norte, o objetivo da peregrinação. Depois de ouvirmos lideranças cristãs e islâmicas sobre a realidade dura, seca, e a incessante busca de paz, a palavra-chave que ecoou foi: coexistir – uma necessidade fundamental neste lugar; desfazer a ideia de que os massacres e as ações terroristas ocorrem em nome de Deus. Os líderes islâmicos clamam: “não há Deus nestas ações – são políticas e busca de poder. Os que agem pelo Mal não são nossos irmãos. Eles matam muçulmanos também!” Os cristãos concordam, clamam serem os maiores alvos do extremismo (considerados “frutas podres numa árvore”) e pedem: “falem isto mais fortemente em público; desqualifiquem os terroristas que usam a sua religião para impor seu poder; não fiquem quietos; nosso governo precisa ouvir vocês”. Meus ouvidos atentaram para uma reclamação: “Não adianta ir às mídias – elas querem o conflito. Mídias sociais têm sido a nossa voz”.

Chegamos em Kaduna com estas palavras ecoando. Numa escala de verde a vermelho no tocante a segurança, Abuja (sul) é verde, o Norte/Nordeste é vermelho – nosso grupo não pode ir. Kaduna é laranja. Muitas ações do Boko Haram por aqui; mas também dos Tocadores de Gado e Rebanhos Fulani – uma milícia envolvida em conflitos por terra. Viemos em comboio com seguranças. Graças a Deus, uma boa viagem. Já ficamos sabemos que no domingo anterior 21 pessoas morreram dramaticamente a duas horas dali (sudoeste de Kaduna) numa chacina em duas aldeias. Quando se fala em aldeias se fala em muita pobreza. Vi muitas delas no caminho.

Kaduna = terra dos muitos crocodilos. Terra do Rio Kaduna. Alvo da nossa visita de solidariedade e aprendizado. Na chegada, mais uma vez fomos recebidos por um coral de mulheres em um culto com a presença de diversas autoridades religiosas locais (foto 3, com o arcebispo metodista). Que alegria! Que energia em meio a tanta dor!! Nas palavras pronunciadas, agradecimentos: “Vocês vieram nos encontrar. Não tiveram medo de vir. Muitos nossos do Sul da Nigéria não vêm. Vocês sabem mostrar que quando uma parte da comunidade humana sofre todos devem sofrer com ela…” Como não chorar?! Como não sentir o peito ardendo de dor e ao mesmo tempo dançar e se alegrar e receber

No quarto dia da Peregrinação, 23/2, Quinta-Feira de Preto: uma campanha contra o estupro e toda forma de violência contra mulheres, iniciada na África do Sul, abraçada pelo CMI e apoiada por gente de todo o mundo. Ouvimos sobre a realidade de Kaduna, uma cidade entre o Norte, predominantemente islâmico, e o Sul, predominantemente cristão, onde os dois grupos religiosos são divididos ao meio em população e onde há muita gente cristã e muçulmana atuando para que Kaduna seja ponte e exemplo de convivência, apesar de tentarem ser impedidos pelos grupos extremistas. Partimos depois para as visitas e diálogos. Para começar, o Fórum da Mesquita da Rua Waffa, onde fomos acolhidos como irmãs e irmãos, e convidados a dialogar do jeito como é feito ali: tirando os sapatos e sentando ao chão (Foto 4). Gente simples, muito amorosa e cheia de fé, que cuida dos tantos pobres e famintos, visita e consola presos e suas famílias, abriga crianças órfãs. Depois ouvimos o secretário-geral do que seria a Associação de Organizações Islâmicas da Nigéria (Foto 5), conversa tensa, um desabafo quanto aos cristãos das igrejas novas e ricas, de apóstolos e missionários que além de “venderem sonhos e comercializarem a palavra de Deus pregam ódio contra muçulmanos. Dizem que cristãos têm que ter armas para se defenderem, que devem quebrar ao meio os extremistas, e ainda têm apoio do governo e de políticos corruptos”.

Partimos depois para um encontro cheio de energia com estudantes e professores do Seminário Teológico Batista em Kaduna. Cerca de 200 jovens nos esperavam na capela do seminário para nos ouvir e nos abraçar e nos agradecer por não termos medo de estar entre elas/eles (Foto 6). Em 2011 o seminário foi totalmente incendiado nas ondas de conflito religioso que varreram Kaduna e abriram caminho para a consolidação do Boko Haram e dos Tocadores de Gado Fulani. Tudo foi reconstruído com material nãoinflamável. Mas agora têm que sair dali. Vão para outra cidade pois estão sob ameaça. Contaram que vão sair com muita dor. Querem se engajar nas ações de justiça e paz e perguntam: como fazemos? Pedimos que eles nos digam pois estávamos aprendendo com elas/eles também.

Ao final do dia conhecemos o Centro Internacional para a Paz e a Harmonia Inter-fés, fundado em 2016 com apoio do Conselho Mundial de Igrejas e do Príncipe Gazi da Jordânia (um militante do diálogo e da cooperação inter-fés) e financiamento do governo da Noruega. Estão documentando e realizando seminários para reflexão sobre ações concretas na vida de Kaduna e da Nigéria.

Há muitas feridas tanto entre cristãos quanto entre muçulmanos. No meio disto tudo há ainda as tradições milenares das mais de 500 etnias espalhadas em tribos pelo país, umas cristãs, outras muçulmanas, outras mantendo as práticas religiosas das raízes negras. São vidas extremamente desrespeitadas e abusadas pelo Império que ainda domina, pelos governos que continuam colonizando e explorando, pelos extremistas com sede de poder… A extrema pobreza espalhada pelas ruas fere o coração. Muita gente vagando pelas ruas, mendigando, vendendo qualquer coisa para sobreviver a pior fase da Nigéria das últimas duas décadas

Em 24/2, foi o dia da delegação ouvir as mulheres. Relatos de dor e desespero pelas/os filhas/as da terra massacrados pelo terrorismo, pela violência da polícia e pelo sistema político e econômico injusto que as/os deixa sem perspectiva, sem futuro; relatos de esperança de quem trabalha com a educação destas/es filhas/os e sonha com uma Nigéria com liberdade e igualdade. Choramos com elas, rimos também. Clamam pela nossa solidariedade: “estejam sempre conosco, como puderem…” À noite participamos de culto com o lançamento da campanha da Quaresma da Rede Ecumênica da Água, do Conselho Mundial de Igrejas. O pregadoi foi o diretor do Seminário Batista.

Passamos o dia 25/2 aprovando o relatório que tem nosso parecer sobre a situação e sugestões para ações do CMI e seus organismos parceiros.

Despedimo-nos, no domingo 26, com uma visita a igrejas. Meu subgrupo foi para uma igreja batista, num povoado de Kaduna que é uma ocupação. Quem mora nesse lugar ao norte da cidade, veio do sul que tem sofrido massacres, escapando da violência. Demandam do governo a legalização das ocupações por questões humanitárias. A igreja, que já havia recomeçado na nova localidade, havia conseguido construir um templo, com muita dificuldade mas, por duas vezes veio ao chão por conta de duas fortíssimas tempestades. Vida difícil para aquelas/es irmãos e irmãs. Hoje se reúnem em templo improvisado, no chão batido, mas com muita alegria e esperança.

Em síntese, não temos na Nigéria um conflito religioso mas um conflito político e econômico em que partes usam a religião como fluído e cortina de fumaça para as causas de fato. O resultado disto é muito sofrimento na forma dos assassinatos em massa, de cristãos e muçulmanos, de muita pobreza e falta de perspectiva. Vale registrar que o maior número de vítimas se encontra entre os muçulmanos. Mas as pessoas não se acomodam: atuam em esforços conjuntos de promoção de paz e reconciliação e ao mesmo tempo esperam nossa solidariedade e acompanhamento. Retornei para casa com um misto de indignação e de esperança, com a certeza de que não sou mais a mesma pessoa que lá chegou em 20 de fevereiro.

Próximos passos

A próxima reunião do GRPJP será realizada em mais uma região prioritária para a solidariedade das igrejas: em 2018, no nosso continente, na Colômbia. Detalhes serão definidos.

Um dos encaminhamentos para o CMI é a organização de Grupos de Peregrinação a partir do convite de igrejas-membros, para ampliar esta experiência e não ficar restrita ao GRPJP, como preparação para Assembleia de 2021. Nesse sentido, igrejas-membro poderão pedir ao CMI para receberem Grupos de Peregrinação às suas igrejas e regiões. Em breve haverá divulgação sobre esta dinâmica. Quem sabe não temos um grupo em nossa igreja/Brasil?

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